sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Amei muito um Homem que foi toda a vida um bruto, um boçal. Falava grosso e arrotava alto, limpava a boca à toalha de mesa, palitava os dentes com uma navalha, cuspia para o chão (dentro de casa). Uma camisola interior de alças era a sua farda oficial, tratava as coisas a pontapé e tinha a força de um gigante. Acreditava em deus, na pátria e na família, mas foi um pai ausente. Dedicou-se a uma missão, mais do que a uma profissão, e por mais do que uma vez terá levado demasiado longe o cumprimento do seu dever. Mas como as coisas nunca são a preto e branco, e as pessoas também não, foi também o mais culto dos Homens, o mais grandioso, o mais doce. Conhecia as estrelas e os nomes dos ventos, sabia de cor o canto dos pássaros e as árvores, as plantas, os rios, os países distantes, os animais exóticos. Sabia como e quando plantar ervilhas, como podar roseiras, como enxertar laranjeiras e como resolver e consertar as coisas. Sempre. O mais doce de si esteve sempre reservado para mim e para a 'menina'. Foi com ele que aprendi as primeiras letras, há mais de 25 anos, a escrever o meu nome e o nome dele. Sentada nos seus joelhos, viajei pelos países todos do mundo, com os meus dedos percorrendo o mapa que forrava a sua mesa de trabalho. Recordo como me enxugava o cabelo, secador numa mão e escova na outra, com o desvelo de uma mãe e a destreza de um coiffeur, com mil cuidados de delicadeza enquanto me desembaraçava os nós do cabelo, para não me fazer doer. Eu amarrava um cordel à presilha das suas calças e passeava-o chamando-lhe Bobi, ou então sentava-me às suas cavalitas e tapava-lhe os olhos com a minha saia. Sem um queixume. Sem uma reprimenda. Ensinou-me a dignidade e a honra. Mas esse Homem há muito que partiu, não tenho certeza para onde. Ficou apenas uma carcaça mirrada, titubeante, hesitante entre a lucidez pragmática e a loucura perigosa. Já não penso nele como o meu avô querido, mas como um José Arcádio preso para sempre à sua árvore, manietado e miserável, de onde nunca mais poderá escapar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Revi me um pouco na tua historia. Sem duvida uma descrição muito real. Parabens!

Nina disse...

Obrigadinha, pá. E já agora, uma vez que os anónimos que aqui comentam estão amplamente identificados, quem és tu, anónimo novo???