domingo, 16 de maio de 2010

De visita a São Salvador da Baía, eu e a minha esposa quisemos consultar uma Mãe-de-Santo. Demasiada crendice, dirão vocês. Demasiado Jorge Amado, respondo eu. Assim que aterrei foi a primeira coisa que disse à nossa guia. Ela respondeu, muito solícita, que tinha um colega especializado nesse tipo de serviço (?!!) e que me ligaria mais tarde para explicar detalhes. Dois dias depois liga-me. Contas redondas, a troco de cem euricos, mais coisa menos coisa, alguém nos iria buscar ao hotel e levar-nos-ia a um terreiro para, com mais uns quantos turistas, assistirmos ao culto. O preço, por pessoa, incluía toda a animação (??!!!!!) e a nossa segurança, uma vez que os terreiros ficavam todos em perigosíssimas favelas. Desistimos da ideia. Mal por mal, antes gastar o guito em caipirinhas e bikinis. Eu, totalmente avessa a programas 'turísticos', prefiro passear por minha conta e risco. Lisboa, Marraquexe, Tunis, Taipa; conhece-se bem mais de uma cultura e de uma cidade sentada numa esplanada a ouvir conversas alheias e a observar o vem e vai que dentro de um museu a olhar para paredes. De maneiras que agarrámos em nós e andámos pela cidade, a sentir a vibração da coisa. Percorremos as ruas e subimos as ladeiras que já amávamos antes de conhecer, de tantas e tantas vezes termos lido sobre elas. Um belo dia conhecemos uma pessoa, uma personagem saída directamente da cabeça de Jorge Amado. Depois de algum tempo à conversa fomos à nossa vida, mas não tínhamos dado nem dez passos e diz a minha esposa "Reparaste nos colares? Ele é do candomblé! Se lhe perguntássemos a ele?". E lá voltámos atrás, roxas de vergonha, com medo de estar a ferir susceptibilidades. Zé Carlos, depois de consultar a esposa com o olhar, e de dizer que não costumava dar o contacto da sua Mãe-de-Santo a estranhos, deu-nos um papelito com um número de telefone. Corri para o orelhão mais próximo e disquei o número. Do outro lado atende-me uma senhora que ao fim de duas frases minhas me pergunta se não sei falar português... Depois de uma aventura linguística lá nos conseguimos acertar. No dia combinado, Zé Carlos enfiou-nos dentro de um táxi e deu as suas indicações ao irmão. Percorremos a cidade e começámos a subir a favela quase em pânico, já arrependidas de onde nos tínhamos ido enfiar. O "irmão" foi impecável, estacionou o carro, chamou pela Mãe e só foi embora quando já estávamos dentro de casa. Casa? Barraca. Muito asseada, mas ainda assim miserável, com imagens recortadas a servir de decoração e uma data de relógios parados ou com horas trocadas. Enquanto a minha esposa entrou lá para dentro para se consultar, eu fiquei na sala a contar os ratos que passavam. Quando chegou a minha vez, ia desmaiando do esforço de conter o riso. Aparece-me uma velhinha encarquilhada, noventa e tantos anos (tinha-mo dito Zé Carlos), escura como a noite, em camisa de dormir, mas com umas venerandas barbas brancas. Devo dizer que a vontade de rir me passou quase a seguir, quando me começaram a rezar e a aspergir com uns líquidos altamente suspeitos. Mandaram-me sentar e ficar de boca calada. O que se seguiu foi um dos episódios mais surreais da minha vida já pouco realista no correr normal dos meus dias. Hei-de guardar para sempre as coisas que me disseram, Mãe O. e a sua Filha C. Algumas coisas pareciam anedota (além de altamente improváveis, na altura), mas vieram a acontecer, implacavelmente, mais cedo ou mais tarde. Neste momento oiço as palavras "apartamento no centro da cidade" ecoarem nos meus ouvidos, e vejo as palavras que se seguiram a piscar em néon. Depois chamaram a minha esposa de volta e passaram-nos o que se pode chamar de um grandessíssimo sermão, de pessoas que não nos conheciam de lado nenhum, mas que sabiam perfeitamente do que estavam a falar (e pelo menos tinham a legitimidade da provecta idade do lado delas). Lembro-me também, com grande carinho, das últimas palavras que Mãe O. me dirigiu. "Você não está perdida, minha filha".

1 comentário:

Unknown disse...

gostei ! invejo são salvador ! a vida ao lado da tua irmã parece merecer tanto a pena... LOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOL