quarta-feira, 16 de junho de 2010

Passei a minha infância fascinada pela figura de um parente remoto, que aparecia de quando em vez na aldeia. Nós íamos e vínhamos; ele "chegava". Era um acontecimento. Toda a minha família, próxima ou afastada, tratava este homem por Padrinho, o que era muito estranho, porque era impossível que tivesse apadrinhado tanta gente, de tão variadas idades. O Padrinho, homem extraordinário e belíssimo, apesar da idade, e a Madrinha, uma réplica da Maria Callas, mas de cabelos brancos, com os seus inseparáveis óculos de lentes verde escuro, eram definitivamente as pessoas mais finas da aldeia. O Padrinho era um homem imponente, de cabeleira branca e sobrancelhas impressionantes. No meu mundo de fantasia, achava que era o Álvaro Cunhal, passando férias incógnito, numa aldeia ribatejana esquecida. O que tornava tudo ainda mais estranho, porque o meu avô insultava o Álvaro Cunhal na televisão, mas tratava o Padrinho com uma reverência inusitada. Isso devia fazer parte do disfarce, pensava eu, para tornar tudo mais verosímil. De facto, o meu avô tratava o Padrinho por senhor (não exactamente da forma que usamos hoje, mas sim numa forma que caiu em desuso há muitos anos, mas que se utilizava ainda há 50 ou 60 anos lá na aldeia, até entre marido e mulher, porque o tu seria impensável, e o vossemecê era usado exclusivamente entre pares), mas o Padrinho tratava o avô por tu! Eu franzia o nariz e espiava-os pelo canto do olho. O Padrinho parecia muito mais novo que o avô... Mais tarde percebi que o que o Padrinho não era mais jovem, era sim mais jovial e que o que vira do mundo lhe dava um à-vontade dentro de si próprio que lhe permitia a informalidade (coisa que o meu avô nunca se permitiu nas relações interpessoais, embora nunca o tenha ouvido tratar mais ninguém por senhor). Percebi também que os Padrinhos tinham sido muito ricos quando os meus avós eram muito pobres e que embora os meus avós nunca tivessem aceitado o dinheiro deles (a minha avó mudou-se temporariamente para sua casa quando lhes nasceu o primeiro filho, e a Madrinha passou muito mal), mas costumavam receber cestinhos com géneros, tão escassos nos anos que se seguiram à Guerra, que eles enviavam lá para casa. Compreendi também o conceito de "obrigação". A nossa família "devia uma grande obrigação" a uma família, ou outra família "devia uma grande obrigação" à nossa, porque há 50 anos nos tinham pedido emprestados 5 litros de azeite, ou porque há 80 eles tinham deixado o nosso rebanho atravessar a fazenda deles para beber água na ribeira. Hoje em dia parece piada, ou uma história passada na Sicília. Mas não. Passou-se connosco, passou-se aqui. Com o tempo estas coisas perderam a sua importância e eu ganhei outra compreensão do mundo. A família dos Padrinhos desintegrou-se quando os filhos se divorciaram das noras, e os netos cortaram relações com eles. Eu já não tinha a J. e o K. para brincarem comigo, e a Madrinha tornou-se uma figurinha pequenina e debilitada, que fazia arroz doce só para mim, porque não havia mais netos que o comessem, tão distante da diva imponente de outros tempos. O Padrinho adoeceu e morreu. Os filhos enfiaram a Madrinha num lar de terceira idade.
Anywayz, hoje já não nos lembramos a quem devemos obrigações, ou quem as deve a nós, e já nem sequer conhecemos as estremas das nossas fazendas, e se isso tem o seu quê de triste, como uma memória longínqua de um mundo mais puro e honrado, por outro lado já se pode contar em voz alta a razão por que o Padrinho ficou tísico poucos meses depois de chegar a Lisboa vindo da aldeia, na força dos seus vinte anos. Ah, aqueles olhos verdes!!!!

2 comentários:

R disse...

A única felicidade dos tempos modernos: descobrir que a minha madrinha, tão pura e tão rígida casou grávida de 7 meses, SETE!, e poder rir-me à gargalhada...

Claro que ela nem sonha que eu sei....

Anónimo disse...

belo texto cat*

pp