quinta-feira, 15 de abril de 2010

Quando era criança adoeci. Tinha febres muito altas e delirava muito. Os médicos disseram que era uma virose, que é o que os médicos dizem sempre quando não têm mais nada para dizer. Mas o pior de tudo eram os pesadelos. A minha mãe deitava-me e, pontualmente, passada uma hora, eu começava a gritar, a chorar, a debater-me. A minha mãe corria para junto da cama e tentava acordar-me. Sem sucesso. Confirmava que eu não tinha febre. Falava comigo suavemente, tentando acalmar-me, mas eu só lhe respondia numa língua desconhecida. Passado um bocado eu acalmava e continuava a dormir tranquilamente. Por fim a febre passou, mas durante os seis meses seguintes, todos os meses, certa como um relógio suíço, voltou. A minha mãe, a mulher mais céptica do mundo, começou a pensar em maldições, ou que eu era vítima de voodoo, ou, pior, que o vírus se tinha alojado no cérebro. Ainda hoje fala desses episódios com angústia, porque recorda o meu esgar de terror, e o seu desespero por não me conseguir acordar. Por fim a febre desapareceu, da mesma maneira como tinha aparecido. Não guardo grandes recordações desse tempo, mas sei perfeitamente o que me aterrorizava tanto. Porque a febre foi embora, mas os pesadelos acompanham-me sempre. Não são pesadelos povoados por lobisomens, nem vampiros, nem mortos-vivos, nem qualquer outro monstro de opereta. Nem sequer são pesadelos com acidentes de comboio, a minha maior fobia. Não. Nem sequer posso dizer que sejam imagens, nem posso explicar o que são, porque não há palavras nem conceitos para explicá-los. Posso evocar a sensação, mas não por mais de cinco segundos sem entrar em pânico. É a sensação mais pura de desolação e desamparo e desespero. Só comparável ao que senti no dia em que julguei que tinha enlouquecido, e que também não consigo explicar. É uma sensação de adimensionalidade e de atemporalidade absoluta. É como ser um grão de areia num estádio de futebol. Não. É ser um grão de poeira na imensidão do universo, ao mesmo tempo que se é gigante quando tudo o mais que existe é minúsculo. E não se consegue alcançar nada. E o tempo não existe, é sempre o mesmo momento, mas prolongado até à eternidade. E está escuro. E as vozes. É como se me gritassem aos ouvidos, mas não gritam, falam num tom normal, mas num volume absurdamente alto, e fazem eco, e são arrastadas, como em slow motion, mas ao mesmo tempo não consigo perceber o que dizem porque falam tão rápido que já se calaram. E não vale de nada acender a luz.

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